Qual é a coisa qual é ela que nasceu no boom do pós-punk, embora não fizesse bem rock? Que chegou a abarcar bateristas e violinistas, mas que nos cativou pelo desolado choro de uma simples guitarra? Que nunca passou de um fenómeno de culto, embora apaixonasse salas no Japão ou em Portugal?
Se a vossa resposta foi The Durutti Column, então é bom saber que o “segredo” tem vindo a proliferar. Ainda assim, nunca é demais passar umas boas linhas a lembrar um nome ainda pouco mencionado, mesmo nas publicações que se dedicam à música independente. E como poderíamos explicar este grupo inglês, que chegou a ser contemporâneo de nomes como Joy Division e A Certain Ratio, mas que nunca obteve o amplo consenso que gente alternativa como Cocteau Twins, The Smiths ou Talk Talk (na fase mais experimental) haveriam de alcançar?
Ouvir um homem franzino tocar instrumentais numa guitarra (ainda por cima, sem palheta nem distorção) talvez fosse demasiado para quem andava à procura de refrões capazes de definir uma geração. Mas a arte do grupo – demasiado letárgica para ser jazz, demasiado instrumental para ser pop, demasiado intensa para ser ambiente e demasiado aventureira para ser rock – é daquelas que se presta bem aos labores da contemplação e da imersão. Tal como um bom livro, ou uma bucólica paisagem, é um prazer com mais de solitário do que de comunal.
Assim é a sina geral dos introvertidos: gente com o raro condão de avançar pelo mundo sem que muitos o notem. E olhem como esta curiosa comitiva – eternamente liderada pelo guitarrista e teclista Vini Reilly – deu voltas e mais voltas, cimentando uma página no capítulo mais criativo dos anos ’80 (e, já agora, da mítica editora Factory Records). Atrever-me-ia a dizer, por isso, que os mais interessantes trabalhos do grupo nem serão exatamente aqueles em que pareciam ainda próximos do pós-punk que os vira nascer.
Três discos subvalorizados
Pronto, está bem: “The Return Of The Durutti Column” (primeiro álbum, de 1980) e “LC” (do ano seguinte) serão os pontos de partida e os itens obrigatórios em qualquer bucketlist. Apesar disso, são álbuns que revelam apenas algumas facetas de quem sempre quis descobrir novas formas de comunicar a beleza de se estar vivo. Ouçamos a longa-metragem orquestral de “Without Mercy” (1984), gravada com Blaine L. Reininger (violinista dos Tuxedomoon), e descubramos Vini Reilly (também ao piano!) a namorar com a chamada “música erudita”, embora sem o pretensiosismo com que muitos o rotularam.
Mas se preferirem águas menos turvas, então deixem “The Guitar And Other Machines” (1987) soar e reparem como as caixas de ritmos e os apontamentos eletrónicos serviam que nem uma luva ao artesão das seis cordas. Curioso como quem tão próximo esteve da delicadeza do piano se transformou, passados três anos, num tecnófilo pronto a reinventar a tradição da guitarra. O resultado foi termos The Durutti Column a expressar estados de espírito que, até então, pouco tínhamos ouvido, especialmente a inocência e a alegria.
Por fim, e porque a conversa já vai longa, abramos alas para “Vini Reilly” (o disco de 1989) e observemo-lo a musicar ambiências – ora quentes, ora pálidas, ora assim-assim – na companhia dos espectros que o seu sampler caçou no ar. Talvez conheçam Annie Lennox, Tracy Chapman e Otis Redding, mas nunca os imaginariam a habitar o mesmo universo que The Durutti Column, pois não? Talvez seja para isso que este disco sirva: para nos levar a uma dimensão paralela onde géneros musicais e estereótipos se diluem ao sabor do maestro que aparece na capa do álbum.
O homem que liderava a coluna
De melancólicos olhos azuis, rosto pálido, cabelo desmazeladamente arranjado, ar cabisbaixo e misteriosa aura de silêncio, Vini Reilly parecia reunir em si todas as características que uma rock star desdenharia – e isto já para não falar dos seus indecisos tiques ao microfone. O que faz dele, com todo o orgulho, uma das mais carismática não-figuras. Nem de propósito, chegou a proclamar “I don’t believe in stardom” na mesma canção em que The Durutti Column chorava o prematuro desaparecimento de Ian Curtis.
Mas quem é, na verdade, este indivíduo que liderou um dos projetos que – da mais discreta forma possível – foi deixando algumas sementes no panorama alternativo dos anos e décadas seguintes? As contradições são aparentes: um guitarrista autodidata que escondia uma formação clássica ao piano. Um homem que não suportava estar mais de três dias a gravar um álbum, embora o resultado final parecesse ter sido laborado durante semanas. Um homem-banda que nunca mais abriria mão do seu fiel amigo, manager e colega musical: o baterista Bruce Mitchell.
De facto, mesmo quando instrumentais, as melodias do grupo pareciam narrar histórias de vida, recordações, amizades ou despedidas. Se atentarmos bem, veremos que em praticamente todos os álbuns existe sempre uma ou duas músicas com nomes de pessoas. Assim era Vini Reilly também: um altruísta que parecia usar o seu talento para homenagear os outros. E, ocasionalmente, lá apareciam composições com nomes de lugares – o que nos leva para um último ponto.
Um amigo de Portugal
Nunca deixa de ser curioso quando um músico anglo-saxónico lá se deixa cativar pela singularidade do nosso país. É o que terá acontecido com Vini Reilly, que chegou a gravar um álbum em Portugal. Mas claro que falamos de um amor correspondido, pelo menos a julgar pela forma como o seu excêntrico grupo enchia salas de espetáculos por aqui. Há quem diga que os paralelismos entre a habitual melancolia lusa e o desalento com que o guitarrista passeava os dedos pelas seis cordas eram demasiado evidentes para se negar.
Aos mais céticos recomenda-se essa curiosa relíquia de 1983: “Amigos em Portugal”. Lançado pela Fundação Atlântica e gravado neste jardim à beira-mar plantado, o disco mostrava o timoneiro do grupo a servir-nos um notívago conjunto de melodias, onde o piano e a guitarra se revezavam com a beleza e sensibilidade que mostram um artífice em caminhada ascendente. E os portugueses ficaram com uma nova banda sonora, ora para saborear a “Saudade” que tão bem nos marca, ora para rememorar a tranquilidade de “Estoril à Noite”, sem esquecer a cinzenta azáfama de “Lisboa”.
Nem o facto de algumas destas composições terem sido retrabalhadas para discos posteriores servirá para relativizar os méritos de uma obra que atingiu um estatuto de “curiosa raridade” entre os fieis seguidores do músico de Manchester. E como que para provar que a sua passagem por cá não tinha sido um flirt de ocasião, The Durutti Column haveria de voltar a navegar por águas lusas, já a meio dos anos ’90, usando um sample de Amália numa canção que se chamava… “Fado”. Pois é, parece que o bom filho a casa sempre torna!
Texto CC BY 4.0 // José Miguel Lopes
Imagem © Factory Benelux