O grupo acaba de lançar “Electrically Possessed [Switched On Vol. 4]”, com trabalhos criados quase só entre 1999 e o seu hiato de 2009. A música luminosa e sofisticada dos Stereolab é como uma poção mágica para a cura que procuramos e que nos obriga a avançar no futuro como seres humanos conscientes e preocupados, de coração aberto e mente livre.
We use the older effects because they’re more direct, more extreme, and they’re more like plasticine: you can shape them into loads of things.
Tim Gane
Os Stereolab formaram-se das cinzas dos McCarthy (1985-1990), uma banda britânica leftwing de Jangle-Pop e Indie-Rock, com letras subversivas e um vocalista (Malcolm Eden) que poderia ter sido top-model. No último álbum, “Banking Violence And The Inner Life Today” (1990), a francesa Lætitia Sadier juntara-se à formação como voz secundária. Dois anos antes, Sadier e Tim Gane, o guitarrista dos McCarthy, conheceram-se num concerto da banda em Paris e foi amor à primeira vista – e uma relação que durou 14 anos. Assim, quando os McCarthy se separaram, Gane e Sadier, ajudados pelo baixista dos The Chills, Martin Kean, o baterista Joe Dilworth e a teclista-vocalista Gina Morris, fundaram os Stereolab – o nome advém da editora americana Vanguard e de uma das suas subdivisões onde se demonstravam as qualidades da alta-fidelidade sonora.
Do enamoramento à criatividade e edição compulsiva
No início da sua existência, os Stereolab lançaram os primeiros discos a expensas da pequena editora que criaram, a Duophonic (que se tem mantido até aos dias de hoje), com venda em concertos, por correio ou na loja da editora Rough Trade. Os Stereolab editavam freneticamente, numa atitude Do It Yourself que era comum nas bandas independentes da altura. Singles seguiam-se a outros singles e EPs em constantes tiragens numeradas e finalmente o álbum “Peng!” (1992) e a compilação “Switched On” (1992), que juntava todos os singles até aí editados.
Em 1992, saídos Kean, Dilworth e Morris, os Stereolab adicionam à sua formação a australiana Mary Hansen (uma fã de longa data dos McCarthy), o baixista Duncan Brown, a teclista Katherine Gifford e o extraordinário baterista Andy Ramsay, que se manteve até aos dias de hoje. Contando com a ajuda temporária de Sean O’Hagan dos High Llamas, os Stereolab continuam a gravar assiduamente, naqueles anos de pura excitação na procura de novos territórios sonoros (Tim Gane conta, em entrevistas, que chegavam a compor 35 temas por dia, aproveitando apenas alguns e recriando outros).
O tempo das boas influências musicais
É a fase “Krautrock-Velvetiana-minimalista”, repleta de influências audíveis (Pop europeu de 60, a “escola” dos My Bloody Valentine, Rock alemão e o Space-Rock dos Heldon, música contemporânea, Library Music, etc.) e outras menos perceptíveis (as que acabariam por moldar o som da banda, nos anos seguintes). É repetida até à exaustão a influência do Krautrock nos Stereolab (Neu!, Can, Faust), na pulsação rítmica das canções – com o empréstimo do Motorik, um beat percussivo criado pelo baterista dos Can, Jaki Liebezeit (o músico afirmou a pés juntos que aprendeu o ritmo de feiticeiros africanos) e desenvolvido por Klaus Dinger dos Neu! (“de uma forma muito Pop” – diz Tim Gane, salientando que os Stereolab ainda foram mais longe).
Funcionando como uma verdadeira máquina orgânica, os Stereolab recuperam para a década de 90, os sintetizadores Moog, Vox, Ondioline e Farfisa (ligados à música das gerações anteriores e, portanto, desprezados) e longas estruturas minimalistas, influenciadas pelo drone de guitarras dos My Bloody Valentine (guitarras ao alto) ou por Terry Riley (teclados ao alto). Desta forma, o pioneirismo da banda não tem par na década de 90 e, apesar do advento de um novo Psicadelismo (Primal Scream, Spacemen 3, Spiritualized) e do Brit-Rock (Suede, Blur, Supergrass), os Stereolab nunca desistiram de seguir o seu percurso idiossincrático.
São deste período os álbuns “Transient Random-Noise Bursts With Announcements” (1993), “The Groop Played ‘Space Age Batchelor Pad Music'” (1993), “Mars Audiac Quintet” (1994), “Music For The Amorphous Body Study Center” (1995, colaboração com o artista plástico Charles Long) e a compilação “Refried Ectoplasm (Switched On Volume 2)” (1995). Entretanto, Morgane Lhote substitui Katharine Gifford (que se junta aos Moonshake, fundando depois os Snowpony), com a promessa de aprender a tocar teclados e decorar trinta canções da banda.
As letras e as palavras nos Stereolab
E quanto às letras? Stereolab sem a palavra não seria Stereolab! Alguns jornalistas, demasiado redutores, continuam a descobrir influências marxistas nas letras de Lætitia Sadier. Ela e Gane têm refutado essa ideia em entrevistas, afirmando o quase total desconhecimento da obra de Marx.
Os Stereolab são politicamente empenhados, mas não panfletários. As letras, sintéticas e metódicas, conduzem-nos a diversas leituras, não só nas vertentes social e política – e é isso o que torna mais fascinante a obra de arte! Influências, se há – afirma Sadier – devem procurá-las nas ideias dos Situacionistas (1957-1972), do Socialismo Utópico, nos poetas românticos e simbolistas (Baudelaire, Rimbaud, Shelley) do século XIX, nos livros e filmes de ficção científica, bem como nos romances distópicos do século XX (Zamiatine, Huxley, Orwell, Boyle, Platónov). A própria Sadier tornaria quase imperceptíveis certas palavras nas canções, enfurecendo particularmente o chauvinismo britânico da imprensa musical.
Mas perfeito é o contraponto vocal de Lætitia Sadier e Mary Hansen, num maravilhoso efeito hipnótico (e “alienígena”, dizem alguns). Se há uma mais-valia da banda para o Rock na década de 90, é o cuidado nas vocalizações, a que se junta uma profusão de sing-a-longs e refrões polirrítmicos sem palavras (entre Meredith Monk e Laurie Anderson).
Experimentação, sofisticação, um nascimento e um álbum polémico
Mas é com os aclamados “Emperor Tomato Ketchup” (1996) e “Dots And Loops” (1997) que os Stereolab conquistam o aplauso da crítica e do público. Os fãs apelidam-nos, carinhosamente, de The Groop. O primeiro é um álbum inquieto, celebratório, efervescente, experimental; o segundo é um álbum sereno, alegre, lânguido e quasi-tropical. Das digressões à América do Sul trazem boas vibrações. A MPB e a Bossa Nova, Burt Bacharach, o Sunshine Pop, a Lounge Music e Steve Reich, por exemplo, entram para a sebenta da banda. E não é de estranhar a produção de John McEntire, dos Tortoise, com a ajuda dos Mouse On Mars, na arquitectura sonora reconstruída. A experimentação dá lugar à sofisticação e a música dos Stereolab alcança novas audiências, tornando-se mais acessível.
Entretanto, depois de quase um ano passado em concertos, era tempo de descansar e eis que o casal Gane e Sadier dá um filho ao mundo. Assim, em 1998, só há espaço para mais uma saborosa dupla compilação da banda, de título “Aluminum Tunes” – a qual poderá dar uma ideia consolidada da heterodoxia e diversidade sonora dos Stereolab.
Em 1999, John McEntire e Jim O’Rourke (juntamente com The Groop), produzem o novo álbum “Cobra And Phases Group Play Voltage In The Milky Night” – e se alguém se decidir pelo pretensiosismo dos títulos dos álbuns, saiba que há sempre uma explicação para o comprimento do nome (aqui, mais uma vez, a relação da banda com movimentos artísticos e culturais do século 20).
Mas “Cobra…” é trucidado pela crítica, que não compreende o som arrojado do álbum. Chegam a compará-lo a uma mistura de “mau Jazz e Rock Progressivo que nada tem a ver com a escola Art-Rock”. O que é um facto é que, nos últimos anos, tem sido descodificado como um dos trabalhos mais revolucionários dos Stereolab. E Lætitia Sadier tem afirmado, em entrevistas, que é, de todos, o seu álbum preferido. Estruturas electrónicas e orgânicas alternam ou sobrepõem-se, riscando texturas, altos e baixos-relevos, ruído branco, Krautrock reformulado ao som do Post-Rock e muitas canções Art-Pop. Em 1999, os Stereolab colaboram com a cantora francesa Brigitte Fontaine (que sempre foi considerada uma influência da banda). E em 2000, editam “The Last Of The Microbe Hunters”, um curto álbum de 39 minutos, muito mal-amado (novamente) pela crítica, mas não pelos fãs. Este período da banda pode ser apreciado na mais recente compilação, de 2021, “Electrically Possessed [Switched On Vol. 4]”.
O trágico acidente e o regresso ao instante zero
“Sound-Dust” (2001) será o novo e belíssimo passo dos Stereolab, antes da brutal tragédia que se lhes vai deparar no ano seguinte: enquanto passeava na sua bicicleta pelas ruas de Londres, Mary Hansen é brutalmente atropelada por um camião desgovernado, tendo morte imediata. É um choque tão inesperado e inacreditável, que a banda adormece, apática!
Não mais as harmonias vocais seriam semelhantes às do período de dez anos em que Mary Hansen esteve na banda. Em “Sound-Dust”, os Stereolab haviam aprofundado a precisão melódica e as canções tinham-se tornado mais misteriosas e enigmáticas. Agora tudo desaparecia. Confrontados com um desfecho de que não estavam à espera, Gane e Sadier, com novos elementos que entretanto já faziam parte da formação, decidem continuar, destroçados, mas decididos! No mesmo ano de 2002, para piorar a situação, a relação de Tim Gane e Lætitia Sadier termina dramaticamente. É-lhes difícil manter a cordialidade durante as entrevistas nas digressões e o equilíbrio da banda está por um fio. É editado “ABC Music: The Radio 1 Sessions”, com gravações entre 1991 e 2001.
Em 2003, os Stereolab gravam o primeiro trabalho após a morte de Mary Hansen. É um pequeno EP de título “Instant 0 In The Universe”, registado no novo estúdio com o mesmo nome (Instant 0) que a banda cria em Bordéus e dedicado à memória da mui querida companheira. O som parece regressar à fase clássica: é pulsante e colorido e é, a bem dizer, um novo “instante zero” para os Stereolab, na sua carreira de treze anos. Sadier salientou, várias vezes, que o espírito de Mary acompanhou a banda nestas gravações e que estas teriam funcionado como uma catarse que a banda precisava naquele momento.
Corpo sincrético de emoções, ideias e indícios extra-sensoriais
Em 2004, “Margarine Eclipse” continuou a sonoridade do EP anterior, desta vez com boas críticas da imprensa musical e do público. Nos anos seguintes, outros álbuns, EPs e singles seriam editados, alguns dos quais também presentes na rectrospetiva de 2021, “Electrically Possessed [Switched On Vol. 4]”.
Mais do que uma análise avulsa do som e do texto, os Stereolab funcionam como um corpo sincrético de emoções, ideias e indícios extra-sensoriais, invariavelmente presentes na sua música. Não é por alguma obscura razão que a sua obra é, inúmeras vezes, um veículo de texturas hipnóticas para melhor interiorizar uma ideia presente nos textos enganadoramente esquemáticos. Está lá tudo – uma ideia e a forma dessa ideia entrar em nós, seja de uma forma intelectual, seja de uma forma corporal. Os Stereolab são como crianças a brincar com ouro.
É uma cura o que encontramos na música luminosa e sofisticada dos Stereolab. À medida que eles nos obrigam a avançar para o futuro da humanidade, como seres conscientes e preocupados, de coração aberto e mente livre.
A música dos Stereolab é o retrato de uma Utopia intemporal, que há-de vir.
Texto CC BY 4.0 // António Jorge Quadros
Imagem CC BY 2.0 // Greg Neate