Concluímos hoje a análise crítica do livro “Revista de Imprensa – os Mão Morta na Narrativa Mediática (1985-2015)”, organizado e trazido à praça por Adolfo Luxúria Canibal. A crítica à crítica dos Críticos, numa perspetiva também crítica e independente.
Retomando a primeira parte deste texto, podemos recordar que Ricardo Saló reconhece, assim, a criatividade dos Mão Morta, embora esta se socorra de um dos seus pontos de referência internacionais (os Swans).
Pelo facto do tempo e do espaço serem recursos escassos, desenvolverá mais esta referência, na crítica ao segundo disco da banda, “Corações Felpudos”, publicada a 8 do 12 de 1990, no Expresso, intitulada “O fio da navalha II”, a qual não coube na “Revista de Imprensa – os Mão Morta na Narrativa Mediática (1985-2015)”: Em resumo: se o universo poético de Michael Gira/Swans (corpos “versus” punhais e a invariável resolução em banho de sangue) persiste como matriz única da qual todas as palavras emanam (…).
Aqui, numa crítica à Crítica, convocando Jacques Lacan, não estaremos perante um declínio da interpretação, em que o analista não está no lugar do morto, mas cadáver já, resumindo tudo a uma matriz única?
(…) pelo contexto das trevas
Nem sequer se abre a obra em simples hipótese, além de tantas outras, de ao se dizerem “Sitiados” (disco Mão Morta) tal poder dever um coche que seja ao contexto irrespirável da cidade dos Arcebispos, desde a pré-história da banda, num ambiente claustrofóbico, tão bem descrito no livro “Narradores da Decadência” de Vítor Junqueira (Quasi Edições, 2004) e tão presente no sotaque de Adolfo… onde os elementos da banda sobre_
viveram?
Na análise ao microtexto linguístico, em vox populi, letras de Adolfo Luxúria Canibal (vide “As Letras como Poesia”, Objecto Cardíaco, 2006 e Edições Afrontamento, 2009), igualmente defendi que a voz dos Mão Morta não se esgota aí, transportando em si toda uma biblioteca itinerante, que se alimenta dos poetas malditos, da beat generation, de diversos vanguardas e –ismos, como paratexto, os quais alguns têm os mesmos tópicos e a mesma que outra resolução, da dominante para a tónica, embora possa ter caído no limite oposto da sobreinterpretação, de que Umberto Eco falava.
Só que não… Não pensei nem falei dos textos de Michael Gira nem de Jean Genet, esse grande filho da p***, como diria Alberto Pimenta, o qual também alimentou mais explicitamente os Pop Dell’Arte, em “Querelle”, por exemplo, e do qual Adolfo Luxúria Canibal falou longamente com João Peste, quando juntos fizeram uma viagem à Galiza, para o Rock Vigo-Porto’86, na sala do Kremlin, dado as duas bandas fazerem parte do evento coorganizado por elementos do fanzine portuense Confidências do Exílio, Rui Sousa e Luís Freixo, bem como do viguês Escupe.
(…) No centro, o Verbo
Apesar disso,
o meu olhar preferiu centrar na originalidade de Adolfo Luxúria Canibal, muito além das fontes, como Jorge Luís Borges recomendava aos seus estudantes. Uma linguagem que recupera em muito o Verbo, que mantém virginal “o rugido da fera, (…), o arrepio da subjetividade, o hálito da emoção”, que o próprio Adolfo Luxúria Canibal deixou no livro “Estilhaços”, da Quasi Edições, 2003, sobre [o Poder] da Palavra.
O defeito será meu, mas encontro mais similitudes com Michael Gira, dos Swans primitivos, nesse outro texto que é dizê-lo; melhor: cantá-lo. Na paralinguagem do rugido… No abalo sísmico que sofreram alguns recetores, como o meu outrora companheiro Fernando Jorge Noronha (De Profundis, U Nu, Orquestra de Guitarras e Bandolins), no primeiro concerto do grupo Mão Morta, no Luís Armastrondo, confessando o desarranjo interior ao ser interpelado: – Quem matou? (Da faixa “Chabala”, disco “Mão Morta Revisitada”). E isso não é a questão estética ela-mesma, bem expressa no título do álbum de 2019 dos Swans, “What is this?” Mas
regressemos à crítica primeira de Ricardo Saló, em torno do macrotexto da canção. Realizador de sonhos, o crítico também vê o objeto Mão Morta sob um olhar cinéfilo, enriquecendo a análise: “(…) espécie de viagem no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, “Aum” parte do cemitério e termina na maternidade, depois de ter atravessado uma cidade em que o velho cede gradualmente o passo ao novo. Não é a Noite dos “Mortos-Vivos” de Romero, nem “Play Time” de Tati, mas antes a visão despida de qualquer emoção de uma cidade, muito próxima, por vezes, da Laurie Anderson de “Big Science”.” Excelente descrição, mas vaga q.b. nesta proximidade,
sabendo à la Sontag, que a inacessibilidade e o mistério são qualidades daquela pouca arte que permanece.
Quod erat demonstrandum.
(…) Dialogando com
Peda_
gogi_
camente, Ricardo Saló deixa uma crítica ao primeiro disco: a de a banda ter de aprender a “produzir-se”, reforçando essa ideia, em torno do segundo disco, “ao olhar pouco atento à mesa de mistura”.
Jorge Pires, aqui também técnico de som, no texto “A viagem interior”, em torno do quinto álbum “Vénus em Chamas”, responde: PROBLEMA RESOLVIDO ao 4º disco, sublinhando “ser mais uma produção exemplar de José Miguel Fortes, um veterano da música portuguesa”, a qual colaboração já vinha do anterior “Mutantes S.21”. E
a intertextualidade fica mais interessante, quando instala a questão que faz o leitor situar-se e ocupar o seu lugar, em textos de opinião mais e menos favoráveis sobre o mesmo objeto. Em
pers_
pe_
tiva(s).
(…) Nova(s) tendência(s) crítica(s) não substituem _ _ anteriores
Como ilustração, apresento dois youtubers: o compositor Rick Beato e o também produtor Friedemann Findeisen, os quais exercem a função crítica de forma diferente. O primeiro analisa o microtexto musical de bandas pop/rock em tablatura ou cifra, pois mais usa os instrumentos de cordas, o segundo mostra partituras e explica.
É uma crítica (posso dizer?) mais especializada, respondendo mais neutra e objetivamente àquilo que na coletânea de ensaios “Contra a Interpretação”, Susan Sontag pensa: “A função da crítica deveria consistir em mostrar como é o que é, até mesmo que é o que é, e não em mostrar que significa. No lugar de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte.” Mas será esta, estritamente musical, forma melhor?
Não creio. Primeiro, porque limita a leitura a alunos de análise e composição, implicando um saber prévio de educação musical. Depois, porque tantos músicos populares não sabem ler nem escrever partituras e estão mais influenciados por algo de inconsciente: um movimento, um ruído, uma paisagem; por folkways diversos…
É certo que Emil Cioran detestaria toda esta explicação profunda, mas
uma abordagem transdisciplinar fica melhor, por mais completa.
(…) em Livro de escrita fina
Concluindo,
não defendo nenhuma forma de Crítica, mas que tanto a de analistas como a de críticos nos devem importar. E no Livro “Revista de Imprensa – os Mão Morta na Narrativa Mediática (1985-2015)” todos os olhares destes, grandes divulgadores de música, numa escrita fina, nos transportam, elevando-nos a diferentes lugares.
Pois esta viagem não faz o caminho para o Conhecimento?
Texto CC BY 4.0 // Vitorino Almeida Ventura
Imagem CC BY 4.0 // Luís Freixo