Experimentalismo, rebeldia, amplitude, ecletismo, ambição e criatividade são substantivos que constam em qualquer bom dicionário da língua portuguesa. Por coincidência, são também palavras que usamos para descrever as bandas associadas ao movimento krautrock. Cá vamos para a segunda parte!
Se bem se lembram, no artigo anterior procurou-se provar como, ao contrário daquilo que as ideias feitas nos diziam, nem todos os alemães tinham de ser necessariamente frios, severos, distantes ou formais. Bem pelo contrário, mostrou-se como o povo germânico – representado pelo rock pioneiro dos NEU!, pelo experimentalismo sónico de Cluster ou pela eletrónica robótica dos Kraftwerk – também se sabia divertir, conseguindo a proeza de cativar e inspirar o resto do mundo a fazer o mesmo.
Mas se parecia haver, ainda assim, algo de vagamente “alemão” no modo como estes grupos expressavam as suas sensibilidades, hoje vamos dar outro passo em frente e falar de três espécies de apátridas musicais. E digo isto porque, embora os seus bilhetes de identidade indicassem que nasceram ou cresceram no grande país europeu, os nossos convidados de hoje assemelham-se mais a extraterrestres que vieram de um outro mundo para redefinir as regras do nosso.
Em comum com os demais “colegas” da geração krautrock, o tríptico que agora se segue também procurava uma forma de expressão que lhe soasse autêntica, sem atentar demasiado na herança cultural alemã nem nas modas que vinham dos Estados Unidos ou de Inglaterra. Num esforço para alcançar esse objetivo, acabaram por ultrapassar fronteiras, improvisar linguagens e redefinir aquilo que a música poderia fazer ou atingir. Escusado será dizer que também influenciaram gente de todas as proveniências e gerações, fascinando novos ouvintes dia após dia.
Sem eles (e, já agora, sem os três que citámos na semana passada) a música alternativa, exploratória e de vanguarda não seria a mesma coisa. Boas leituras e… bis bald!
Can: olha-me só que lata!
Formados em Colónia, os Can surgiram no fim dos anos ’60 e podiam ter acabado os dias a serem “apenas” mais uma banda rock, daquelas cheias de intenções experimentais, embora sem o espaço mental necessário para as concretizar. Mas o imprevisível aconteceu quando os quatro instrumentistas que compunham a espinha dorsal do grupo ficaram órfãos do seu cantor original. Em resposta a isso, parece que alguém achou boa ideia convidar, para novo vocalista, um artista de rua japonês que se limitava a fazer o melhor que sabia para ver se ganhava uns trocos. Falamos de Damo Suzuki, o timoneiro que ajudou aqueles quatro talentosos alemães a mergulhar num mundo sem retorno.
Surgiam, assim, os Can que hoje conhecemos: a banda que pegou nos ingredientes do rock para os desfazer numa batedeira e servir um concentrado que ora sabia a jazz (para quem não gostava de demasiados acordes), ora soava a funk (para quem não gostava de dançar), ora se parecia com arte de vanguarda (para quem não gostava de abandonar o rock). Aliás, no decorrer de cada tema (e, logicamente, de cada álbum) havia uma combinação de elementos díspares que se mesclavam numa magia que parecia simultaneamente instintiva e trabalhada.
Havia, assim, longas improvisações – imediatamente reconhecíveis pelo vigor rítmico do baterista Jaki Liebezeit – que eram laboriosamente recortadas e transformadas nas músicas que hoje ouvimos em discos como “Tago Mago” (1971), “Ege Bamyasi” (1972) ou “Future Days” (1973). Pelo caminho (e mesmo depois da deserção de Damo Suzuki), os Can piscaram o olho à pop dançável, dialogaram com a eletrónica, brincaram com a arte do sampling e deixaram-se contagiar pelo calor da música inspirada em África, sem nunca perderem a sua identidade. Nem, claro está, a sua lata!
Faust: punho cerrado nas convenções
Os Can terão sido – sem sombra de dúvida – um dos projetos mais ecléticos e influentes do movimento krautrock. Ainda assim, o prémio da anarquia sónica tem de ser entregue aos caóticos Faust. E já que começámos a conversa por aqui, convém que não se deixem enganar pela designação do grupo: digo isto porque Faust não se trata de um nome próprio, mas sim da palavra “punho” em alemão. Quem avisa nosso amigo é, certo? Pois olhem que o coletivo idealizado por Uwe Nettelbeck não estava mesmo para cerimónias, chocando os incautos logo ao disco homónimo (1971).
E, pensando bem, que outras reações poderia ter suscitado um álbum que conciliava o que pareciam ser vários fragmentos de ideias, motivos musicais, conversas e efeitos sonoros aleatoriamente justapostos? Musique concrète, diziam uns. Terrorismo sonoro, afirmariam outros! Mas seria esta peculiar forma de fazer arte – tão manifesta em discos como “The Faust Tapes” (1973) – resultado de gente diletante ou visionária? Se a pergunta vos soar algo familiar é porque já a fizemos, noutros contextos, em relação a gente como The Velvet Underground, Yoko Ono e (para sair dos exemplos da música) Marcel Duchamp.
E bem que os Faust lá fugiram à fórmula, intercalando discos de rock desregrado, embora já mais objetivamente “tragável” (basta conferir “So Far”, de 1972, e “Faust IV”, do ano seguinte), com exercícios mais abstratos que tanto se faziam de singelos momentos ao piano, como da estridência de um saxofone ou à guisa de guitarras desenfreadas que acompanhavam vozes loucas, a cantar para orelhas moucas. Ainda hoje, é difícil levar estes alemães a sério e talvez seja essa uma das suas vitórias: o rock precisava de uma lufada de ar fresco que lhe permitisse rir-se de si próprio e parodiar os seus próprios limites e aspirações.
Tangerine Dream: um citrino no cosmos
Reservado para o fim da lista está um projeto que foge um pouco aos típicos contornos do krautrock, embora nas suas origens (e em discos como “Electronic Meditation”, de 1970) encontremos paralelismos com o rock psicadélico e vanguardista, tão em voga no culminar da década que nos trouxe The Beatles ou Pink Floyd (versão Syd Barrett). Ainda assim, os especialistas em termos “técnicos” preferem o qualificativo kosmische musik para descrever a odisseia auditiva que o guitarrista e teclista Edgar Froese protagonizou a bordo dos Tangerine Dream (na imagem).
Utilizando a tecnologia que havia ao dispor, o grupo alemão ganhou altitude e afastou-se cada vez mais da superfície terrestre (e dos instrumentos que por cá se usavam) para explorar a infinidade do espaço sideral. O resultado dessas travessias – que por vezes se estendiam por metades inteiras de um disco em vinil – evidenciava um novo mundo, habitado pela ambiência do sintetizador, esse instrumento que tão depressa oscilava entre o suave e o depressivo, sem esquecer o caótico, o meditativo ou o sinistro.
Ao invés de galvanizar a música eletrónica de dança e a cultura pop (como os congéneres Kraftwerk), Edgar Froese provou que aparelhos como o Mellotron ou o VCS3 poderiam acrescentar camadas de sentimento ao pensamento, fazendo da linguagem eletrónica um palco para o estímulo da mente. Lembremos que as deambulações que os Tangerine Dream protagonizaram em álbuns como o clássico “Phaedra” (1974) também contribuíram, a seu modo, para o florescer da música ambiente ou para a noção daquilo que hoje reconhecemos como álbuns ou bandas com “um quê de cinematográfico”. E a malta, desde então, nunca mais desceu à Terra!
Texto CC BY 4.0 // José Miguel Lopes
Imagem CC BY 2.0 // Paul Carless