Artistas há muitos. E gostos — como se costuma dizer — não se discutem. Até porque, no fim de contas, ganha sempre a Alemanha. Sejam bem-vindos à nossa primeira viagem pelo mundo do krautrock!
Ouvir alguém falar bem da Alemanha não será, propriamente, a coisa que os portugueses mais desejem. Até porque não foi assim há tanto tempo que nos livrámos do rigor orçamental da troika e dos severos tempos da austeridade. Já os fãs de futebol continuarão a lembrar-nos de que os últimos embates da seleção portuguesa frente à congénere germânica não têm sido pródigos em boas recordações.
Tudo muito certo. Mas há um contexto em que o apreço pela maior potência da Europa deve falar mais alto do que quaisquer condicionantes de ordem política, social ou emocional. Falo, claro está, da excelente música que a Alemanha tem vindo a produzir desde meados do século passado. Habituado a dar cartas nos mais diversos ramos da indústria, o povo germânico editou álbuns capazes de fazer muito mais do que apenas atravessar fronteiras ou ter reconhecimento artístico.
A prova? Basta reparar na influência que alguns projetos deixaram na sensibilidade de músicos que iam desde a pop comercial à eletrónica exploratória, passando pelo hip-hop ou pelas sonoridades industriais. Poucas palavras podem descrever esse heterogéneo fenómeno (conhecido como krautrock) que viu diferentes grupos alemães expressarem-se de uma nova forma, usando como referências não apenas o rock que se fazia em língua inglesa e o psicadelismo hippie, mas também a música clássica e até o trabalho de vanguardistas como Karlheinz Stockhausen.
Enfim, a lista de coisas que poderíamos mencionar é tão grande que hoje ficamos apenas por três nomes maiores de uma cena musical que teve o seu apogeu no começo e meados dos anos ’70. Como se diz em bom alemão: tudo isto foi gente que definiu o zeitgeist!
NEU!: a novidade que se escreve com maiúsculas
Um dos maiores clichés acerca dos alemães é a ideia de que eles nunca se atrasam, fazendo da sua imaculada pontualidade um motivo de orgulho. Sabemos, no entanto, que todos os estereótipos são perigosos – seja porque simplificam a realidade, seja porque nos cegam com juízos de valor. Ainda por cima, os NEU! são aquele tipo de banda que não cabe nas ideias feitas. Em vez de aparecer no ponto de encontro à hora marcada, o duo de Düsseldorf quebrou o protocolo e apareceu… muito antes do tempo!
Ouvir, em 1972, a bateria maquinal de Klaus Dinger em sintonia com a guitarra etérea e o baixo minimal de Michael Rother deve ter sido equivalente a testemunhar a abertura de uma caixa de pandora. Neste caso, o que se libertou foram os ventos de uma revolução Rock que continua a gerar dividendos. Gostam de desafios? Então coloquem o álbum homónimo desta gente a tocar e tentem não ficar com a sensação automática de que estão a ouvir Joy Division, Sonic Youth, Stereolab ou Mogwai.
Todos esses são grupos que não existiriam (ou cujo som seria deveras diferente) se Klaus Dinger e Michael Rother não tivessem brindado o mundo com a sua química. E se foi o arrojo que os uniu, seriam as crescentes divergências estéticas a ditar o fim de um projeto que também nos deu resquícios de música ambiente e rock cru feito aos berros (conferir as duas facetas de “NEU ‘75”), manipulações sonoras (basta ouvir a segunda metade de “NEU! 2”) e até momentos cómicos e/ou de pop dançável (quando se reuniram para trabalhar no que seria o disco “NEU! ‘86”).
A metamorfose segundo os Cluster
Costumamos imaginar a Alemanha como um país mega-industrializado, onde toda a gente conduz carros topo de gama e comunica numa língua em que se arranha a garganta. Mas uma coisa que essas caricaturas nunca mencionam são as virtudes da vida rural germânica. E essa é só mais uma razão por que é importante falar de outro duo musical: os Cluster. Sim, o nome parece pouco germânico, mas o apetite pela inovação artística e pelo experimentalismo sónico não deixam enganar ninguém.
Poderíamos até pedir emprestado o título de uma novela de Kafka (“A Metamorfose”) para definir o que foi acontecendo ao projeto de Hans-Joachim Roedelius e Dieter Moebius no decorrer dos anos ’70. Sem dar explicações a ninguém, o projeto que usava instrumentos sonicamente tratados para improvisações plenas de dissonância e ruído (basta conferir os álbuns “Cluster ’71” e “Cluster II”) transformou-se numa microfábrica de suaves momentos melódicos. Há quem diga que o momento de viragem foi quando este duo trocou a agitação berlinense pela tranquilidade dos campos alemães.
E se reivindico mais atenção para o lado idílico da vida é porque fechar os olhos ao som da música eletrónica dos Cluster pode ser como saborear uma deambulação pela inocência da infância (especialmente em “Zuckerzeit”) ou pela simplicidade que a natureza assume quando todos já estão a dormir (no obrigatório “Sowiesoso”). Com gente desta, não admira que Brian Eno e o já mencionado Michael Rother se tenham juntado à festa, colaborando com o duo (através do projeto Harmonia). Já entre os seus fiéis seguidores, contam-se nomes como Giorgio Moroder, Throbbing Gristle ou Merzbow.
Kraftwerk: os robôs na autoestrada da techno pop
O último dos lugares comuns que vamos mencionar é a convicção de que os alemães costumam ser muito sérios e frios no contacto social, fazendo questão de irem diretos ao assunto em qualquer conversa. De facto, quem ouve a música progressivamente mais eletrónica (e menos orgânica) que os Kraftwerk (na imagem) fizeram desde meados da década de ’70 encontra uma banda que elevou a filosofia da repetição e do minimalismo a um patamar em que os próprios performers se confundiam com máquinas.
Acrescentemos a essa equação a obsessão pelo progresso tecnológico (havendo álbuns dedicados – por exemplo – a autoestradas, comboios de alta velocidade, computadores ou até à grande cidade) e a aposta em vozes robotizadas e teríamos tudo para descrever a banda menos user-friendly deste triunvirato alemão. Mas, no decorrer do seu labor, as máquinas foram peças-chave numa invenção que mudaria para sempre o panorama da cultura pop: afinal a música eletrónica podia ser simples e até soar quente ao ouvido, como se houvesse vida a manifestar-se por detrás de cada nota de sintetizador.
Álbum atrás de álbum, o grupo de Ralf Hütter e Florian Schneider foi afinando uma fórmula que acabaria por fazer do som sintetizado o grande protagonista dos anos ’80. Falamos de um cenário dominado pela Techno Pop e assim se chamava também o disco (de 1986) em que os alemães finalmente passaram o testemunho aos seus seguidores. Eram eles David Bowie, Yellow Magic Orchestra, New Order, Art of Noise ou, já mais recentemente, Aphex Twin, Chemical Brothers, Daft Punk e muitos, mas muitos outros. Conclusão: as máquinas sempre foram melhores do que o ser humano!
Texto CC BY 4.0 // José Miguel Lopes
Imagem CC BY-SA 4.0 // ΛΦΠ