Compositor, músico e produtor, Hector Zazou deixou-nos imensos álbuns, duma música criativa e transversal, que tocava e beijava o clássico, o eletrónico, o ambiental, a pop e a world music. Uma música com uma raça única e bem definida: a humana!
Doente desde o início do ano, Hector Zazou morreu a 8 de setembro de 2008. Tinha 60 anos apenas. Nesse mesmo ano viu ainda sair mais dois novos álbuns com o seu nome, a juntar a uma extraordinária e imensa discografia: primeiro saiu o eclético “Corps Électriques” (em parceria com Katie Jane Garside, Bill Rieflin, Lone Kent e Nils Petter Molvær) e, depois, “In The House Of Mirrors” (com o quarteto indo-usbequistanês Swara). Um par de anos depois, em 2010, foi publicado o álbum original, mas póstumo, “Oriental Night Fever” (um reinterpretação orientalizada de êxitos da pop music dos anos 70 e 80, gravado na companhia da cantora e do instrumentista italianos Barbara Eramo e Stefano Saletti). Já em 2012 surge também “The Arch”, com o grupo vocal feminino búlgaro Eva Quartet, agregando ainda muitas participações que se poderiam dizer ser de luxo, como as de Djivan Gasparyan, Bill Frisell, Robert Fripp, Ryuichi Sakamoto e Laurie Anderson.
Esta é a segunda e última parte da entrevista que recuperámos do folheto MINIMAL, editado pela audEo em 1994, quando Hector Zazou se apresentou ao vivo em Portugal. No seguimento da primeira parte, aqui publicada, assim prosseguimos esta conversa que terminou sem nunca ter terminado. É que com ele todos os diálogos subsistem, para além do tempo e do lugar.
1977-1990, uma compilação com inéditos… e alguma polémica
‒ Para além da sua habitual ligação à editora belga Crammed Discs e à subordinada Made To Measure, há um disco recompilatório, intitulado simplesmente “1977-1990”, lançado na Hungria pela TomK, que nos desperta particular curiosidade. Qual é o conteúdo específico desse disco e o que é que ele nos apresenta de novo?
‒ Essa compilação não é húngara, mas da Checoslováquia. Um pequeno selo checoslovaco propôs-me lançar uma espécie de best, para o qual eu escolhi os títulos. Reagrupa extratos do “Traité de Mécanique Populaire”, “Géologies”, “Géographies”, “Reivax au Bongo” e “Guilty!”, assim como duas composições inéditas gravadas em concerto: a primeira foi composta para uma peça de teatro ‒ “La Version Définitive (2ème Mouvement)” ‒, tratando-se de uma partitura para orquestra de câmara (ainda que a composição da formação seja um pouco particular: todos os instrumentos foram duplicados e juntei-lhes trombones e percussões) e a segunda [‒ “Prélude Corse No. 1” ‒] é uma pequena peça para teclado, trompete e saxofone soprano, tocado pelo Renaud Pion, que puderam ver a atuar aqui, no Porto. O responsável da editora nunca me manifestou a mínima gratidão: não só não me dirigiu um único cêntimo de direitos de autor (o que eu poderia ter perdoado perfeitamente), como nunca me agradeceu! Foi uma atitude pouco cavalheiresca, sobretudo quando se sabe que também editou [no ano seguinte, em 1992] o “Traité de Mécanique Populaire”.
Sonoridades dos mares frios do Norte
‒ Falando já do seu próximo disco, “Songs From The Cold Seas”, no qual se encontra a trabalhar a partir de músicas tradicionais dos territórios árticos, gostaríamos de lhe perguntar se conhece e tem a intenção de explorar os cantos guturais dos esquimós?
‒ Certamente sabem que a palavra esquimó se traduz por “comedor de carne crua” e que os inuítes (que é o seu verdadeiro nome, que significa “ser humano”) não gostam muito que os chamem de outra forma. Sim, eu gravei os inuítes ‒ dois jovens cantores, uma rapariga e um rapaz, o que é bastante raro ‒ na Ilha de Baffin, na região do Norte do Canadá. Que fazer de seguida? Esse foi um problema bastante difícil de resolver! Eu queria tentar construir em torno das duas vozes um ambiente que lembrasse o Norte, utilizando, portanto, sons sintéticos e uma outra voz, a da cantora Marina Schmidt, da Gronelândia. Apesar de ela não conhecer plenamente a música tradicional do seu próprio território, pedi a Marina que partíssemos de um canto xamane que encontrámos num disco antigo. Depois, mais um paradoxo: tocar-me a mim, um francês, fazer redescobrir a uma cantora gronelandesa a sua própria cultura… A música americana destrói todas as músicas locais: os gronelandeses cantam as canções de Bob Dylan ou do Sting e não compreendem que para eles a única maneira de se dar a conhecer ‒ de sobreviver ‒ é regressando às suas próprias raízes.
Zazou, presente à sua própria ausência
‒ Outro dos seus projetos recentes e um álbum com o compositor, pianista e poeta norte-americano Harold Budd que, pelo que nos foi dado a ouvir no concerto de hoje, deverá resultar muito intimista e subtil. Quais vão ser as ideias a desenvolver e até que ponto a poesia (que hoje esteve muito presente) terá importância nessa nova obra?
‒ Efetivamente, o disco com o Harold Budd vai ser mais intimista. Vai ter poucos convidados: Renaud Pion, Christian Lechevretel (o trompetista que toca em “Les Nouvelles Polyphonies Corses” e no “Sahara Blue”), Barbara Gogan (na guitarra), o baixista francês Daniel Yvinec (que também ouvimos no disco “Sahara Blue”), Brendan Perry (dos Dead Can Dance), Mark Isham, Lian Amber (cantora nova-iorquina que acabo de descobrir e que considero excelente) e, provavelmente, dois ou três outros músicos que virão trazer o seu savoir faire já nos próximos dias. Será uma música minimal (como puderam ouvir), que tentará casar o ambiental e ritmos, mas não haverá poesia beat. Terá muito menos textos lidos, sendo todos do Harold Budd. Porquê este disco? Porque conheço o Harold desde 1978, porque aprecio o seu trabalho e porque pensei que, juntos, poderíamos chegar a algo de interessante. A mim, que tenho tendência a sobrecarregar, ele ensinou a conter-me, a trabalhar à beira do vazio, a estar presente à minha própria ausência, como diria Proust. Ele ensinou-me o poder de uma nota bem colocada, a sabedoria da espera, a força da concentração. Podemos já ter compreendido estas ideias, mas é ainda preciso vivê-las, em estúdio e em palco, para entendermos a sua importância.
Ao longo desta entrevista e depois, na correspondência que trocámos, Hector Zazou foi de uma disponibilidade e simpatia extremas. Se a sua música já nos impressionava, a isso acrescentámos o que aprendemos com ele e as suas histórias, na abordagem das coisas, no detalhe que narrava das opções que tinha feito. Como se fosse ainda possível concretizar um dia essa utopia, que se carrega e transmite de geração em geração. A verdade é que algo desse ideal, desse pensamento, ficou connosco, para sempre.
Ele assim permanece, presente à sua própria ausência!
Entrevista e texto CC BY 4.0 // Luís Freixo // Gonçalo Calheiros
Imagem © Crammed Discs