Pierre Job nasceu em 1948, na Argélia. Na metrópole adotou o nome de Hector Zazou e fez-se músico e produtor, trazendo uma nova abordagem à música, como se não existissem fronteiras. De África à Europa, passando pelos territórios árticos e pela Ásia, o planeta mudou com as suas mestiçagens das músicas do mundo.
Nas primeiras gravações em disco, na segunda metade dos anos 70, o grupo de Hector Zazou misturava canto e narrativa em várias línguas com sonoridades subtis ao estilo impressionista de Erik Satie; depois, nos anos 80, foi a vez de ele dar atenção às explorações geográficas com inusitadas abordagens neoclássicas ou ambientais e, sobretudo, fazendo fusão de música tradicional africana com música eletrónica europeia; já a partir dos anos 90, ofereceu-nos múltiplos tesouros musicais como a sua esmerada reinterpretação das populares polifonias corsas, ou a elaborada leitura e ornamentação dos textos literários de Arthur Rimbaud; depois, nos anos que se seguiram, apresentou-nos mais e mais colaborações e regressos às músicas populares urbanas e não urbanas, deste mundo vivo que não era só seu e que deixou, em 2008, aos 60 anos de idade.
Em 1994 tinha estado em Portugal, onde atuou. Nessa altura falámos com ele, numa entrevista para o folheto MINIMAL, editado pela audEo. Agora que a editora belga Crammed Discs decidiu lançar pela primeira vez em CD o seu disco de 1985 com Bony Bikaye, “Mr. Manager”, decidimos recuperar essa conversa de há um quarto de século, que não perdeu ainda interesse e atualidade.
Do coletivo Barricade ao duo ZNR
‒ O seu percurso musical começou no coletivo Barricade, nome que depois passou para ZNR, de Zazou’n’Racaille. Pode falar-nos dessa época?
‒ François Billard (hoje jornalista) e eu próprio criámos o grupo Barricade em 1969. O nome era evidentemente provocador e nós utilizámo-lo para penetrar à força no mundo do rock. A nossa ideia era simples: a música não é reservada àqueles que sabem tocar um instrumento; toda a gente pode ter ideias musicais; toda a gente pode tirar sons de um instrumento! Tratava-se de encontrar, no grupo, um equilíbrio entre os músicos e os não-músicos. O que nem sempre foi fácil! Muitas pessoas passaram pelo grupo, que em alguns meses se transformou numa comunidade. Nós citávamos os situacionistas (Guy Debord, Raoul Vaneigem), Erik Satie ou o Captain Beefheart e escrevíamos canções com títulos estranhos como “Plus Beau qu’un Pavé Dans la Gueule d’un Flic”. Tomávamos LSD e, às vezes, até drogas mais duras. Os nossos concertos eram bastante noisy para a época. Em 72 ou 73, o nosso grupo partiu-se em dois: de um lado ficaram os “radicais” (que não o continuaram a ser por muito mais tempo), enquanto do outro ficámos os músicos (que ainda o são). O fim dos sonhos comunitários chegou muito depressa. Depois dissolvi o Barricade 2 (ou talvez o grupo se tenha dissolvido sozinho) e decidimos formar o duo ZNR, com Joseph Racaille, que já fazia parte do Barricade 2. Vivíamos juntos, com as nossas famílias. Éramos casados, pais de família. Precisávamos, creio eu, de um pouco mais de ordem e de paz nas nossas vidas. Parámos com as drogas e, para ganhar algum, eu tornei-me músico de baile. Depois fui professor, já que tinha formação em Economia. Em 1976, gravámos o álbum “Barricade 3″, título de homenagem ao grupo que tínhamos amado e ao qual demos muito. Creio que para nós não havia rutura entre os “anos Barricade” e a experimentação discográfica que tentávamos. Tratava-se de um seguimento lógico, um novo período, como o de um pintor que passa do seu período azul ao seu período vermelho ou verde… Dois anos passaram e Racaille e eu separámo-nos. Continuámos a trabalhar até 1980 e depois a nossa colaboração cessou definitivamente. O “Traité de Mécanique Populaire” tinha nascido em 1978 e foi uma espécie de testamento: o fim dos anos 70, fim das apalpadelas, fim das ilusões, começo do pragmatismo e de um certo profissionalismo. Pela primeira vez, tínhamos gravado num bom estúdio (em Paris, já que, até então, vivíamos e trabalhávamos no sul de França), com músicos que também tinham progredido, dominando um pouco melhor as técnicas de gravação (Harvey Neneux, David Rueft, Patrick Portella, Manfred LeLalo ‒ o primeiro é hoje professor de guitarra no Conservatório de Marselha, o segundo toca jazz em Paris, Patrick faz parte do Groupe de Musique Experimentale de Marseille e Manfred montou o seu próprio estúdio de gravação). As peças são mais confinadas do que em “Barricade 3″. Algumas não envelheceram, mas outras são inaudíveis, como para mim o é globalmente… Por este disco eu sinto uma verdadeira ternura!
A fusão de rock com música africana e a eletrónica do CY1
‒ Em 1983 saía o seu primeiro disco com Bony Bikaye, “Noir et Blanc”. Na capa faziam questão de mencionar a coautoria de CY1. Quem eram eles e o que lhes aconteceu entretanto?
‒ No início dos anos 80, em Paris, a música africana começou a afluir aos meios mais atentos: jornalistas, gente da moda, discotecas. Cantores como Papa Wemba ou Ray Lema instalaram-se em França, pois sentiam que aí podiam começar uma carreira internacional, aí encontrar músicos que os ajudariam a revelar, em bons estúdios, a música que eles queriam fazer. Eu comecei por gravar [“Malimba”] com o Papa Wemba, o que na época chamávamos um maxi de 45 rotações. Foi uma primeira tentativa de fusão entre rock e música africana. O disco passou despercebido, mas deu-me vontade para ir mais longe. Bony Bikaye era o baixista de Papa Wemba e, de longe, o mais amargurado de todos os músicos africanos de Paris. Era aquele que se questionava mais. O que estava pronto a tentar as experiências mais rebuscadas. Mais ou menos no mesmo momento (não houve coincidência e os acontecimentos foram fruto do acaso) conheci um duo de habilidosos [CY1] que utilizava os seus enormes sintetizadores duma maneira completamente empírica, conseguindo produzir sons e sequências formidáveis ‒ mesmo se, às vezes, não tivessem consciência disso ‒, com um intenso perfume africano. Esse duo (Guillaume Loizillon e Claude Micheli) mais o Bony Bikaye eram a resposta à questão que eu me colocava: como misturar música tradicional africana e música eletrónica? O registo fez-se rapidamente, numa semana de estúdio, praticamente sem parar. Na época não existiam sequenciadores com memória, nem sequer computadores para guardar os sons. Era, portanto, absolutamente impossível reproduzir duas vezes a mesma coisa. Desde que os CY1 encontrassem uma boa base, Bony gravava a sua voz, chegando a trabalhar em duas peças em simultâneo, para não perdermos tempo. E assim, enquanto Bony fazia as suas partes de voz, os CY1 preparavam já a sequência seguinte… Quando o disco [“Noir et Blanc”] saiu pediram-nos para fazer concertos. Nós registámos os ritmos sintéticos, para serem reproduzidos [ao vivo] por um gravador de bobines. Atuámos um pouco por toda a Europa, mas depressa me apercebi que teríamos interesse em substituir as gravações por verdadeiros músicos. Tanto mais que Bony e eu queríamos que o disco seguinte fosse mais comercial. Um erro! Fomos apanhados na armadilha do nosso próprio público, [já que] quando as pessoas se puseram a dançar nos nossos concertos, [nós] entrávamos no jogo. A partir daí já não tínhamos nenhuma outra obsessão, que não a de fazer levantar o público, a de o fazer dançar, e esquecemos que a nossa força estava na experimentação. Num tal contexto os CY1 já não tinham lugar, levando-nos ao fim dessa colaboração. Sei que Guillaume e Claude tentaram depois lançar um disco em seu próprio nome, mas não resultou. Claude parou com a música e Guillaume tornou-se professor de eletroacústica num pequeno conservatório dos arredores de Paris.
Uma harmonia musical que se nutre das diferenças
‒ Conhecendo a sua discografia na Made To Measure, passando também por “Les Nouvelles Polyphonies Corses” e, depois, por “Sahara Blue”, poderemos afirmar que Hector Zazou é um alquimista das músicas do mundo? Considera que o seu objetivo é encontrar a fórmula para comunicar universalmente pela música, ou há algum outro sentido no seu trabalho?
‒ Eu não estou certo de ter uma finalidade precisa. Não penso, em todo o caso, que esses discos tenham sido gravados com tal preocupação: encontrar uma fórmula que me permita comunicar com a Terra inteira. Um músico ‒ como qualquer outro artista ‒ deve primeiro aprender a comunicar consigo próprio. A tentar abrir um caminho na massa de informações que absorve todos os dias e ver nessa enorme aglomeração um bocadinho de luz. Não estou certo de um projeto, de uma ideia, senão quando ouço a música na minha cabeça. Isso não significa que depois não ande às apalpadelas ou que nunca me engane, mas o que conta é ter uma perceção global do que será o disco ou o concerto. Processo egoísta, portanto, que exclui talvez toda a procura de diálogo. De seguida, se diálogo há com os outros músicos, ser-me-á ele imposto?… Porém, gosto muito de trabalhar em colaboração com os outros, pois desejo, antes de mais, ser surpreendido. Um paradoxo de que nunca pude ou quis desembaraçar-me. Digamos que tenho necessidade de controlar globalmente o que vai acontecer, mas que arranjo espaços de liberdade com os quais espero que me surpreendam. Que significa comunicar com um músico? Tocar nos mesmos tons? Improvisar sobre os mesmos modos? Escutar, tentar entender as estruturas, ou o que se esconde por detrás das notas? O que eu proponho aos músicos que colaboram comigo, é seguir regras. Algumas regras são muito rígidas (tocar em tal sítio, de tal maneira), outras muito mais maleáveis (como cantar-me uma canção que tenha por tema o mar…), mas todas são constrangedoras e conduzem-nos lá, onde eu (e não eles, talvez) quero chegar. Mas contam uma história (sempre a mesma): que eu tenho vontade de gravar com eles (graças a eles). Já que não é figurativa, a música pode dispensar as palavras e, portanto, as explicações. A música é feita de emoções, não precisa de levar mensagem. Dito isto, fazendo de modo que um etíope costeie um japonês, que uma israelita cante com um argelino e que um corso seja acompanhado por um africano, eu tenho consciência de [estar a] construir um mundo imaginário, de onde todos os conflitos seriam excluídos. Um mundo perfeito baseado numa harmonia que talvez não seja universal, mas que existe concretamente num dado momento, numa situação bem particular… Portanto, de certa maneira os meus discos são políticos: eu desejaria que todos os que tentam construir algo (no domínio artístico, político ou social) conseguissem alcançar essa harmonia. Uma harmonia feita de diferenças. Uma harmonia que se nutre das diferenças. Porque, mesmo que o meu trabalho consista em misturar culturas, deve ficar bem claro que não se trata em caso algum de limar as suas diferenças. Pelo contrário!
A imagem apresentada no topo deste artigo retrata os ZNR, de Hector Zazou e Joseph Racaille, em estúdio. Foi encontrada online, sem identificação do autor ou referência aos direitos de utilização, e editada para corresponder ao padrão de formatação neste blogue. A segunda e última parte da entrevista será em breve aqui publicada.
Entrevista e texto CC BY 4.0 // Luís Freixo // Gonçalo Calheiros
Imagem © The Commercial Zone