“The wayfarer”, a obra multimédia acabada de lançar pela audEo na apopshop, resulta de um projeto dos Haarvöl e seus convidados, coletivamente criadores de músicas e de filmes, de fotografias e de gravuras – uma ideia artística e colaborativa para escapar ao isolamento, que nos leva por territórios que iremos descobrindo e percorrendo.
O coletivo Haarvöl tem tido, desde o seu início, uma clara vocação experimental no sentido de estender os limites, às vezes agressivamente auto-impostos, que circunscrevem numa lógica de fechamento o território da intervenção de muitos projetos. Obviamente, temos um posicionamento estético que, no entanto, é poroso e especialmente elástico no que respeita à plasticidade da experimentação que apresentamos – não poderia ser de outra forma. Fazendo uso de um termo emprestado das artes visuais, atuamos num “campo expandido” onde a liberdade de escolha é primordial e decisiva para que o caráter experimental não seja apenas retórico, mas operativo. É aí onde gostamos de nos situar.
Foi nessa direção de uma experimentação aberta que, no final de 2015, começámos a discutir a possibilidade de criar um conjunto de temas que estivessem próximos de um possível sentido de quietude. Quietude, de acordo com nossos pressupostos, é um estado de calma que proporciona uma capacidade profunda de atenção ao detalhe e ao Tempo. E, porém, é, também, uma possibilidade que não abdica de manter uma relação próxima com a realidade e, portanto, conceptualmente afastada de qualquer intencionalidade mística de recusa e fuga dessa realidade.
O relacionamento com o real pode passar pela quietude, se assim o quisermos, sem obviamente cortar laços com outras formas sensoriais de estar, como temos feito e continuamos a fazer no nosso projeto. A ideia de quietude para a nossa música não se insere voluntariamente na chamada ambient music conhecida e praticada por muitos músicos. Porque não queremos. Preferimos uma abordagem de quietude sem ligações rotuladas, novamente, a possibilidade de estar em “território expandido”. E basta observar com alguma atenção os títulos dos temas para entender as nossas opções na abordagem da realidade. Mas quisemos levar mais longe essa relação, acrescentando à abstração dos sons a realidade das imagens.
Desde o início do projeto, pretendemos aprofundar esta relação cinemática dos sons com as imagens. Essa foi e é, de facto, uma relação decisiva no nosso percurso. Para este projeto em particular, optámos por focar a nossa atenção numa estratégia colaborativa que nos levou a produzir curtas bandas-sonoras para pequenos filmes realizados por artistas visuais que foram convidados especialmente para a sua realização. São seis curtas-metragens com as suas bandas sonoras ou, se preferirmos, seis músicas com as suas imagens. O que nos interessava, acima de tudo, era alcançar um paralelismo que se tornasse equivalente para cada um, onde ambos os componentes fossem mais do que as partes, onde fossem o todo, mais do que a sua soma. Que refletissem, necessariamente, o resultado indivisível da colaboração.
Já o tínhamos dito: a ideia colaborativa é uma possibilidade essencial no caminho para escapar ao isolamento. Queremos manter e aprofundar, como aqui, este processo e este projeto. Por isso, queríamos acrescentar outro elemento às narrativas audiovisuais. Propusemos a um outro conjunto de seis artistas, que “interpretassem” individualmente, e de acordo com a sua singularidade, os temas que havíamos composto, já não como imagem movimento, mas como imagem estática. O desafio seria fazê-lo a partir da relação sensorial e abstrata proporcionada pelas sonoridades e, como tal, a nenhum deles foi dado a ver qualquer dos filmes, entretanto produzidos para cada um dos temas. O resultado introduz um outro nível de significação para os temas, para as narrativas audiovisuais e para as imagens que eles próprios produziram.
Iniciámos o pensamento em torno deste projeto, com a intenção de o organizar conceptualmente segundo a lógica analógica dos discos de vinil. Um lado A e um lado B. Portanto, as narrativas audiovisuais apresentar-se-iam de duas formas distintas: de um lado, uma primeira parte ocupada por uma quietude propícia a visões quase oníricas e uma segunda parte, mais opaca e ensombrada. Com o avançar do projeto o pensamento foi sendo alterado no sentido de abdicar desta metáfora e avançar para partes distintas, sem qualquer referência ao vinil. Os lados foram substituídos por partes: parte I e parte II.
Se mais não fosse, a jornada em que viajámos através das sonoridades abertas que compusemos para este conjunto de temas, mas, ainda assim, profundamente individualizadas e reconhecíveis como nossas, seria, por si só, uma bela justificação conceptual para o título que escolhemos. Mas queríamos também fazer a viagem acompanhada de encontros que vão acontecendo na quietude do tempo que passa. Um desses encontros importantes, foi, obviamente, com os artistas que produziram a capa do objeto. Em forma, dita obsoleta, do recurso a tecnologias de impressão e reprodução não mecanizadas. Mas a arte sempre teve apreço pela obsolescência. De algum modo é aí, nesse território, fora do up to date efémero da espuma dos nossos tempos sem tempo que ela se corporiza da melhor forma. Por isso este objeto é também composto por gravuras executadas e impressas manualmente, assim como o seu interior é impresso em forma de serigrafia manual.
Para nós, o mais importante foi que todo este processo colaborativo tenha atingido aqui o seu ápice. Que possamos dizer que temos um projeto partilhado com aqueles de quem gostamos e assim superar as limitações que a prática individualista sempre quis impor.
Este é, assim, um projeto da nossa iniciativa, mas que consegue superar essa contingência com a sua plena afirmação como que, de uma espécie de elogio à colaboração. O viajante – “The wayfarer” – aqui referido não é, nem nunca quis ser, um solitário. Ele é, pelo contrário, alguém que, para continuar a viajar, precisa do Outro como essência para afirmar a viagem e chegar de forma bem-sucedida a uma conclusão. Esta conclusão está aqui, claro, com o lançamento do objeto que produzimos. Depois, serão os outros, o público, que lhe darão o acompanhamento natural. Uma colaboração expandida.
O nosso tempo tem que ser, de forma cada vez mais afirmativa, um tempo de dizer não ao isolamento. Aqui, mas também em tudo o que é a realidade. Pelo menos é isso o que queremos para que o nosso viajante possa continuar. Será pedir pouco e, contudo, é também algo carregado com muito. Sobretudo, nestes tempos sombrios que agora atravessamos e que, pensamos, este projeto ajudará, à sua maneira e de forma humilde a ultrapassar.
Texto CC BY 4.0 // Fernando José Pereira
Imagem CC BY 4.0 // Isabel Almeida