António Jorge Quadros é o autor e realizador de A Montanha Mágica, programa que patrocinamos na rádio Transforma. Casualmente iremos seguindo aqui as suas notas auditivas, sobre alguns dos trabalhos que adquiriu na apopshop e que divulgou no seu já extenso programa de rádio.
Nine Rain – Mexico Woke Up – CD2 – SDX28105 (2006)
Nine Rain é o projecto que o ex-Tuxedomoon Steven Brown fundou na Cidade do México, em 1993, depois dos anos europeus. Com músicos mexicanos, Brown gravou 5 álbuns, entre 1996 e 2009. Este é o quarto, se contarmos com o disco ao vivo na Europa de 2003 – que apenas se pode comprar online, sendo raro. Como dificílimos de arranjar também são os dois primeiros álbuns, que contaram ainda com a colaboração de José Manuel Aguilera dos Jaguares e La Barranca, duas famosas bandas mexicanas.
Nesta edição especial de “Mexico Woke Up”, o segundo disco é uma selecção saborosa de temas desses dois primeiros trabalhos, o que muito se agradece. Se tiveram a oportunidade de ouvir o último álbum de Steven Brown, “El Hombre Invisible” (2022), podem ter a ideia da sonoridade dos Nine Rain, com mais electricidade, instrumentos étnicos e uma ideia de combate. Reparem no título: O México acordou! Arrasado pelos espanhóis e repartido pelos americanos, o país acordou para a sua independência cultural, os mitos e as civilizações pré-Colombianas foram estudadas, entendidas e respeitadas.
É um híbrido-Rock, como o próprio deus asteca Tezcatlipoca, entidade de face dupla, temido pela sua magia, representado pelo Sol, que tanto dá fartura como fome. Se a música do grande compositor Jorge Reyes, nos transcende e faz viajar pela antiguidade, as canções dos Nine Rain impelem-nos para a batalha contra o obscurantismo católico que enegreceu o solo do México e aniquilou a espiritualidade dos povos pré-Colombianos. Preocupados com os sacrifícios humanos que observaram in loco, os padres europeus trataram logo de retribuir com outros sacrifícios e um banho de sangue inimaginável.
Steven Brown – El Hombre Invisible – CD – CRAM310 (2022)
O último disco de Steven Brown é um trabalho que aposta nos textos e na voz (agora visivelmente madura e escurecida), enquanto o fundo musical parece amplificado por uma abóbada escavada na terra, debaixo do solo (como uma kiva dos índios Pueblo do Novo México). O registo é característico de Brown, quer na sua obra a solo, quer nos discos dos Tuxedomoon ou das colaborações com outros músicos. Entre a declamação, o canto e a improvisação – tem sido a ideia familiar de um nicho muito especial que encontrou como casa a mui eclética (e hoje prestigiada) editora belga Crammed Discs.
As canções de Brown estão com os espíritos ancestrais dos índios perseguidos e massacrados pelos cruéis invasores espanhóis (é a temática de um dos temas, “The Book”), estão ao lado de todos os desprezados da vida que fazem dos locais nocturnos o seu refúgio e estão contra a verdade traiçoeira e a vacuidade da vida actual (reparem que já não se fala de modernidade ou contemporaneidade) – e é essa resistência à barbárie humana que tanto é tecnológica como obscurantista, que Steven Brown marca como um baixo-relevo na pedra mais dura. Aos 70 anos, Brown não faz questão de ceder à vulgaridade. E nós agradecemos.
Texto CC BY 4.0 // António Jorge Quadros
Imagem CC BY-SA 2.0 // PaT