Com novo disco, “Ensoulment”, acabadinho de sair, é tempo de rever como começou, com a década de 80, a já longa carreira de Matt Johnson, o jovem homem que logo depois preferiu passar a assinar como The The.
MATT JOHNSON – Burning Blue Soul (1981)
Em 1981, Matt Johnson não tendo ainda alterado o seu alter ego para o enigmático nome The The (que, na altura, achávamos piada pela curiosidade fonética), gravou um disco fantástico na 4AD (que estava a começar) que, ao longo das décadas, tem sido desvirtuado com capas diferentes e a inevitável associação aos The The, depois do êxito inesperado de “Soul Mining” em 1983.
Naqueles anos da procura de uma identidade, Johnson colaborou com Simon Fisher Turner e também nos Marc and The Mambas de Marc Almond. Mas antes conseguira agarrar o interesse de Ivo Watts-Russell para a edição deste seu disco a solo. Vamos esquecer os The The, se pensarmos que “Burning Blue Soul” não é exactamente a mesma coisa. A voz é inconfundível, mas musicalmente o álbum é um quebra-cabeças. Primeiro, a capa original está mais próxima do Psicadelismo-Soul dos finais de 60 (Temptations, Impressions, West Coast Pop Art Experimental Band) e, segundo, as canções são tão experimentais que se percebe porquê o álbum não teve a aceitação que devia ter tido numa editora independente.
Percussões étnicas reais e gravadas, guitarras que atiram riffs inesperados aos quatro ventos, ruído e reverse tape effects, ambientalismo ameaçador, improvisação – tudo se conjuga para uma atmosfera que não é propriamente convidativa. Dirão alguns “humpf, disco de formação não memorável”. Mais uma vez digo: esqueçam os The The, mas não desprezem este patinho feio. Matt Johnson está aqui mais perto de projectos como os Cabaret Voltaire ou Bourbonese Qualk, na sua perseguição de uma música Folk-Industrial. Entre alguns instrumentais, há grandes canções, espartilhadas é certo, mas grandes. A guitarra de “Icing Up” intimida, lembrando um pouco o extraordinário “The Twilight Hour” de “Soul Mining”, e “Another Boy Drowning” tem uma atmosfera semelhante aos seus contemporâneos The Durutti Column. Ouçam sem preconceitos. Os The The iriam só apurar o estilo…
THE THE – Soul Mining (1983)
Vamos pôr os pontos nos iis e afirmar que “Soul Mining” é uma pérola da música Pop vanguardista britânica. Não é Rock, não é Synth-Pop, tem electrónica, tem acordeões e violinos, marimbas, percussões étnicas. E há uma voz que é uma voz que nos conquista de imediato. Muitas bandas lutavam por um lugar ao sol e não percebiam a importância de um vocalista. Matt Johnson é a antítese de Ian Curtis e ambos têm um timbre semelhante. Johnson dá-nos amor, mesmo quando o tema é a paranoia humana ou a solidão da sociedade industrial (o fabuloso tema-título). Ele sabe que deve transmitir essa mensagem de esperança e ela está nas inflexões da sua voz. É a compaixão versus a arrogância de muito do Rock britânico, principalmente na década de 90.
E “Giant”, a suíte percussiva do final do disco, é um genial ritual de passagem, que atinge o paroxismo nos tambores de Zeke Manyika. Uns anos antes, Peter Gabriel já tinha aberto uma ponte para África e os Talking Heads descobriram que Fela Kuti podia servir muito bem para o Rock americano. Ritmo, lirismo, ritmo, lirismo: o disco balança entre o coração-ritmo e o coração-lírico, não há um ponto intermédio. Quando, nos anos seguintes, Johnson seguiu o sonho americano (como tantos outros, desde os Prefab Sprout aos U2), senti falta da sua aorta. Vi-o ressequido, a calcorrear os desertos por onde o sangue índio caiu em golfadas e as estradas dos bluesmen. Ou então quando, politicamente empenhado, fez críticas severas ao mundo, aos senhores das guerras e das doenças.
Depois de “Soul Mining”, o rapaz de longos caracóis perdera a inocência. A seguinte, era sem dúvida a sua batalha. Durante muitos anos, olhámos para as feridas que ele apontou, com horror. Mas o mundo não fez nenhum esforço para mudar…
Texto CC BY 4.0 Deed // António Jorge Quadros
Imagem CC BY-SA 4.0 // Helen Edwards