Existindo há 30 anos, comemora-se hoje o aniversário da audEo, loja e editora de músicas alternativas, criativas, inovadoras ou de arte. A história é contada pela voz de um dos seus fundadores, que procura resumir as iniciativas, contratempos e audácias de quem não parou ainda de sonhar, nem de ousar, dos tempos da fundação aos do lançamento da apopshop.
Do registo do nome à abertura da loja
No último sábado de novembro de 1991 abria ao público a audEo, localizada na loja 00 da galeria comercial do Edifício Bristol, na avenida da Boavista, no Porto. Surgiu como loja de atendimento ao público, importando e comercializando discos, livros e revistas de músicas alternativas. Mas foi um começo difícil, pois a denominação audEo prestava-se a equívocos que não facilitaram o seu registo. Para além da evidente analogia com áudio, a velha palavra latina “audeo” tinha o significado de audácia, de ousadia, de iniciativa. Foi só após essa explicação, escrita e fundamentada, que o nome foi admitido a registo comercial de pessoa coletiva. Graficamente, o nome adotou um E maiúsculo, para destacar a intencionalidade e evidenciar que não se tratava de um erro de escrita.
No Porto, à época, apenas existiam algumas lojas de discos que, timidamente, ousavam investir em propostas musicais mais arrojadas: a Salt’Ibérico, a MC/discoteca e pouco mais. Tudo o resto, quase sem exceção, era mais generalista. Já em Lisboa existia no Bairro Alto a loja de discos Contraverso, que era o centro das atenções para a oferta em Portugal de música verdadeiramente nova, ousada e excecional. Pode assim dizer-se que a audEo surge no Porto, de forma autónoma, como uma extensão física, real e visitável da loja que em Lisboa era um leitmotiv de toda a ação musiconovista e independente que se desenvolvia em Portugal.
A pequeníssima loja da audEo (que vemos nas fotos anteriores) apresentava propostas do que foram sendo definidas como músicas criativas, inovadoras ou de arte. Foram essas as áreas assumidas de forma pioneira e objetiva como o espaço privilegiado de intervenção e de ação da audEo. Desde logo começando a fornecer a outras lojas e, depois, a importar diretamente e distribuir regularmente discos, livros e revistas de editoras europeias tais como a Ex Records, Geometrik, Ikon, Incus, Jungle Records, Leo Records, Materiali Sonori, Minus Habens, No-CD Rekords, Opium (Arts), Phaidon Press, Realambient, RecRec Music, ReR Megacorp, Serpent’s Tail, Sordide Sentimental, Sub Rosa, Swim ~, The Wire Magazine, These Records, Too Pure, Touch, ou as americanas Ambiances Magnétiques, Giorno Poetry Systems, Knitting Factory Works, Les Disques Victo, New World Records, Subterranean, etc.
A audEo como editora e produtora de conteúdos
Seis anos depois, em 1997, por iniciativa do jornalista e crítico de música Rui Eduardo Paes, a audEo edita “Release From Tension”, um disco de Carlos Zíngaro, com violinos, guitarra portuguesa, voz e eletrónica. Escreveu o crítico Alexandre Pierrepont, na revista francesa Jazz Magazine: “rien ne manque ici d’intérêt” e esse foi, sem dúvida, um começo editorial muito feliz! Logo depois, em 1998, é lançado “Flute Landcapes”, o primeiro disco em Portugal do flautista Carlos Bechegas, num solo com flauta, eletrónica e voz. Ainda nesse ano ano sai também um irónico e reflexivo livro (entretanto esgotado) de Vitorino Almeida Ventura, escritor, mas também letrista e vocalista do grupo U Nu. No ano seguinte, 1999, é a vez do disco de música eletroacústica “Self Eater And Drinker”, de Ernesto Rodrigues e Jorge Valente, com violino, sintetizador e computador. Nesse ano também são avaliados projetos de edição com Vítor Rua e Jorge Lima Barreto, acabando por ser lançado o expressivo trabalho homónimo de art-rock experimental do coletivo Dis Nasti Dog, orientado pelo guitarrista dos Telectu.
Por estas alturas, a audEo também se encontrava ativa com a realização própria de programas radiofónicos, produzindo conteúdos: primeiro na RadioPress, onde apresentou “Pressões Digitais” e o colaborativo “ObSessões” (com a parceria da alemã Radio Marabu), e depois na rádio Nova, apresentando “Discos Impedidos”.
A loja maior, mais edições e o lançamento da apopshop
No virar do milénio, a audEo muda-se para uma loja maior (imagem anterior), na mesma galeria comercial. Por essa altura sai também o disco de poesia sonora “O Despertar do Funâmbulo”, para a voz incendiária de Américo Rodrigues (na foto, à esquerda) acompanhado de participações instrumentais de músicos como Gregg Moore (idem, à direita), Rodrigo Pinheiro, José Oliveira e Nuno Rebelo, entre outros. Logo depois era a vez de um belo trabalho de guitarra planante por Alexandre Soares, “Vooum”, lançado em parceria com o Balleteatro para ilustrar um bailado da coreógrafa Né Barros.
A loja física encerraria em 2003, dando lugar a uma presença exclusivamente online, através da loja que viria a ser batizada, em homenagem à cultura e à arte pop, como apopshop ou, descrita por outras palavras, “uma loja online dedicada predominantemente à comercialização de discos de música criativa, inovadora, excecional, surpreendente, alternativa, esquecida ou ignorada, mas que nos encanta! É uma loja que procura um excelente relacionamento com o público e os seus clientes, valorizando a comunicação, a honestidade, a simplicidade, o atendimento e a simpatia.”
A audEo continuou ativa como editora, lançando em 2005, numa nova parceria com o Balleteatro, três DVDs (entretanto também esgotados), dirigidos por Filipe Martins, com música de Alexandre Soares em dois deles e de Pedro Tudela no terceiro, para três distintos trabalhos das coreógrafas Né Barros e Isabel Barros. No mesmo ano, numa parceria com a editora britânica ReR Megacorp, é lançado “Boîte à Petits…”, o primeiro CD do jovem guitarrista luso-francês Philippe de Sousa, descrito pela coeditora como “an excellent, deeply musical record, tuneful and exquisitely played; always very Portuguese in flavour, but with an edge. Detuned moments are perfectly placed, and always contained in sharp, focused composition.” Recomendado!
Comemorar o passado e construir o futuro
Ao longo dos anos seguintes, a apopshop manteve-se ativa, enquanto a audEo ficou numa assumida hibernação. Eram tempos difíceis, não só pela profusão de grandes espaços portadores da alegada “alta-cultura”, com políticos a inaugurar grandes lojas, nelas anunciando de viva voz, em tom de compromisso, que finalmente essa grande cultura tinha chegado a Portugal… Mas eram maus tempos também pela introdução de novos formatos (imateriais) de ouvir música, reduzindo ou eliminando a necessária procura dos formatos físicos, que iria mantendo o equilíbrio e a subsistência dos músicos e do mercado, como até então nos habituáramos…
Quinze anos tinham passado e mais quinze trariam a audEo (e a apopshop) aos dias de hoje. Assim, em 2021, ano do seu 30º aniversário, a audEo (editora) lança “The wayfarer”, um trabalho inédito do grupo português Haarvöl, num objeto de arte que inclui um CD, um DVD, 6 fotografias de autores convidados e a capa com duas gravuras originais assinadas pelo artista Eduardo Belga, numa edição simbolicamente limitada a 30 exemplares numerados, comercializados em exclusivo na loja online.
Num tempo de muitas e constantes incertezas, talvez até crescentes, mas também de inquestionável motivação e dedicação, a pioneira audEo comemora os 30 anos decorridos desde que se constituiu como empresa e reafirma os princípios da sua fundação e a mesma atitude militante e resistente: “O futuro tem sido e continuará a ser construído acompanhando as inovações e os desafios dos tempos. Amanhã, daqui a um mês, um ano ou depois, esperamos continuar a prestar um serviço inspirado na procura de mais conhecimento, na procura de mais prazer, na esperança de descobrir e de proporcionar aos nossos amigos e clientes um vasto mundo de maravilhas musicais, que se partilham e jamais se esgotam. Esse é o nosso desafio e a nossa viagem.”
Texto e imagens CC BY 4.0 // Luís Freixo