Ousando ultrapassar as suas próprias fronteiras de género, expandindo a criatividade de forma constante e inventiva, desta vez os Aquaserge envolveram-se num novo projeto lançado pela Made To Measure, que homenageia a música contemporânea de meados do século passado, evocando Morton Feldman, Edgard Varèse, Giacinto Scelsi e György Ligeti.
Pop experimental, inspirada em música erudita
Fundada em 2005, a banda de pop experimental Aquaserge tem sido uma corrente subterrânea na cena musical internacional dos últimos anos, influenciando e inspirando músicos sem conta. Nascida em Toulouse, no sudoeste francês, pela iniciativa de três amigos (Julien Barbagallo, Julien Gasc e Benjamin Glibert), rapidamente se tornaram num coletivo mutante com muitos colaboradores (incluindo os fundamentais Audrey Ginestet e Manon Glibert), enquanto os três fundadores se multiplicavam como parte dos Tame Impala, Stereolab e Melody’s Echo Chamber, respetivamente, para além de outras colaborações. O primeiro álbum do grupo foi editado em 2009, “Un & Deux”, seguiu-se “Ce Très Cher Serge Spécial Origines” em 2010, o colaborativo “April March & Aquaserge” em 2013, “A l’Amitié” em 2014 e “Laisse Ça Être” em 2017.
O seu novo disco, “The Possibility Of A New Work For Aquaserge”, acabado de lançar pela Crammed Discs na série Made To Measure, vai buscar inspiração à peça “The Possibility Of A New Work For Electric Guitar”, composta em 1966 por Morton Feldman para o também compositor e improvisador Christian Wolff. O primeiro respondeu nessa altura a um apelo para acrescentar uma composição ao programa de um concerto: “Well, there would be the possibility of a new piece for guitar” e depois explicou que compôs uma peça para guitarra elétrica que pudesse superar o instrumento, utilizando métodos de tentativa e erro para criar sonoridades não habituais numa guitarra elétrica.
Mas o mais estranho estava para acontecer: a caixa com a guitarra de Christian Wolff e a partitura foi roubada no ano seguinte e a peça deu-se como perdida durante quarenta anos. Porém, em 2007, uma gravação deste a interpretar a composição de Morton Feldman foi encontrada em Berkeley (na Califórnia, EUA), nos arquivos da estação de rádio KPFA. A obra foi então recuperada a partir dessa gravação e reinterpretada para de novo poder ser apresentada ao mundo.
Reflexão sobre a música de 4 compositores atípicos
Até certo ponto foi isso que também os Aquaserge quiseram agora fazer. Ousando, como sempre, ultrapassar as suas próprias fronteiras de género, expandindo a criatividade de forma constante e inventiva, desta vez o grupo envolveu-se num projeto que homenageia a música contemporânea de meados do século passado, em particular a de alguns dos seus compositores mais atípicos: Edgard Varèse (1883-1965), Giacinto Scelsi (1905-1988), György Ligeti (1923-2006) e Morton Feldman (1926-1987).
Inspirando-se nas dinâmicas, texturas sonoras e tempos das suas obras, explorando especialmente os timbres e oscilações de Scelsi, os movimentos das sequências sonoras de Ligeti, o cubismo melódico de Varèse e as partituras gráficas de Feldman, os Aquaserge trouxeram a este novo disco uma mistura de intuição e método, criando oito peças musicais perfeitamente híbridas, balizadas entre a linguagem não académica do rock e a da música erudita.
O álbum desenvolve-se em redor de três peças extensas e lentas, onde o timbre dos instrumentos se funde e dá lugar a uma massa sonora fascinante, ora imobilista, ora em movimento, como nalguns dos trabalhos de Ligeti e de Scelsi. Em contraste, as homenagens a Varèse e Feldman incorporam movimentos explosivos e segmentos de improvisação selvática. Os Aquaserge complementam essas peças com a interpretação de três raras canções escritas por Edgard Varèse sobre o poema “Un grand sommeil noir”, de Paul Verlaine e por Morton Feldman (em duas versões) sobre o texto “You, you only, exist”, de Rainer Maria Rilke. Nelas evidencia-se o apreço dos Aquaserge pela melodia.
O som que queremos encontrar na Crammed Discs
O alinhamento final deste disco é o seguinte:
1 / “Un Grand Sommeil Noir” / 4:29 – O tema original foi composto em 1906, quando Edgard Varèse tinha ainda pouco mais de 20 anos, sendo do género tonal e pós-romântico, influenciado pelos seus contemporâneos Claude Debussy, Maurice Ravel e Erik Satie. É também a peça mais antiga que se lhe conhece, assentando sobre um texto do poeta Paul Verlaine, resultando numa composição com características raras na sua obra.
2 / “1768°C (à Edgar Varèse)” / 7:04 – Dedicada ao compositor francês, esta peça junta às linhas musicais circulares e obsessivas da composição original, a sua característica secção rítmica, frenética e não constante.
3 / “Hommage à Giacinto Scelsi” / 6:30 – Este compositor italiano era especialmente fascinado pela tridimensionalidade do som que, do seu ponto de vista, é esférico. O grupo procurou atender a essa perspetiva do som. Seguiu uma partitura gráfica, atento aos conceitos de Scelsi, explorando o timbre e a interferência entre frequências muito similares.
4 / “Only (Version 1)” / 1:16 – Assentando num poema de Rainer Maria Rilke, esta é uma das primeiras composições do jovem Morton Feldman, que na altura tinha ainda 21 anos. Também é uma das suas raras peças para voz solo e foi uma das primeiras abordagens do grupo na conceptualização deste trabalho.
5 / “Comme des Carrés de Feldman” / 5:12 – Uma improvisação livre, alegre e ruidosa, estruturada por uma partitura gráfica inspirada nas que Morton Feldman criou e que foi das primeiras a serem utilizadas.
6 / “Only (Version 2)” / 1:36 – A segunda do par de versões que os Aquaserge criaram sobre a peça de Feldman com o poema de Rilke.
7 / “Nuit Terrestre (à György Ligeti)” / 10:03 – O desafio era a utilização de variados instrumentos com timbres heterogéneos e fazê-los soar como um único e grande instrumento, como um órgão ou como um coro, fundindo os timbres de forma não percetível, tendo em mente a seguinte instrução de Ligeti: “Sobre a superfície plácida de um corpo de água vemos o reflexo de uma imagem e, então, ondulações perturbam a superfície calma da água, mudando e fazendo extinguir-se essa imagem. Muito gradualmente, a superfície da água repousa, aparecendo então sobre ela uma nova imagem, diferente”.
8 / “Nuit Altérée (à György Ligeti)” / 2:38 – Esta peça é, segundo a própria banda, uma abordagem vertical na sua homenagem a Ligeti. É como se o grupo estivesse a rasgar a água ou a congelar a sua superfície e a apresentar-nos esse resultado. É, de certa forma, uma abordagem espectral da peça anterior.
“The Possibility Of A New Work For Aquaserge – Perdu dans un étui de guitare” foi apresentado em cena como espetáculo musical e teatral. O grupo que gravou este disco e subiu ao palco integrava o quinteto de base e os seus colaboradores neste trabalho: Audrey Ginestet (voz, baixo e sintetizador), Benjamin Glibert (guitarra elétrica, baixo elétrico, órgão, sintetizador e vozes), Camille Emaille (percussão, vibrafone e sinos tubulares), Julien Chamla (bateria, percussão, órgão, sintetizador, harpa e vozes), Julien Gasc (voz, sintetizador e percussões), Manon Glibert (clarinetes e vozes), Marina Tantanozi (flautas e vozes), Olivier Kelchtermans (saxofones barítono e vozes), Robin Fincker (saxofone tenor, clarinete e vozes), Sylvaine Hélary (flautas e vozes) e também por Anouck Hilbey (voz em playback), para além de outros.
O disco “The Possibility Of A New Work For Aquaserge” tem o som que queremos encontrar nas edições da Crammed Discs e é certamente um dos trabalhos mais interessantes a descobrir neste quase final do ano, talvez até um dos melhores discos editados e chegados até nós em 2021.