Gavin Bryars e o seu ensemble apresentaram recentemente ao vivo entre nós duas das suas obras maiores: “The Sinking Of The Titanic” e “Jesus’ Blood Never Failed Me Yet”. Vamos falar dele e da forma como sentimos a sua música.
Da improvisação livre à composição minimalista
A música de Gavin Bryars é um discurso de imersão, de profunda dedicação a um tema, de dissecação, de encontro e de retorno. Nasceu em Yorkshire (Reino Unido) em 1943 e no início dos anos ’60, como contrabaixista, formou um trio de jazz com Derek Bailey e Tony Oxley. Mas o seu interesse tornou-se maior pela composição do que pela improvisação e começou estudos nessa área, partindo para Nova Iorque em 1966, com esse propósito. Focou o seu interesse académico nos vanguardismos da New York School, a que estavam ligados compositores como Morton Feldman, Earle Brown, Christian Wolf ou mesmo John Cage, com quem chegou a estudar. Posteriormente colaborou com compositores como Cornelius Cardew e John White, que faziam parte do coletivo britânico The Scratch Orchestra.
A partir de 1969 deu aulas de música, ano em que também apresenta a primeira versão da sua obra de referência, “The Sinking Of The Titanic”. Tendo cerca de 30 minutos de duração, essa peça foi inspirada no trágico afundamento do famoso transatlântico, procurando retratar a orquestra do navio que, apesar da catástrofe que o levou ao fundo do mar, continua incessantemente a tocar uma melodia que sofre as supostas nuances do abafamento do som, que se mistura com os sons do navio que se parte, com vozes dos passageiros ou da tripulação, de caixinhas de música ou de metal que se rompe, que desliza, que se esmaga. A obra seria aperfeiçoada nos anos seguintes, até que viu a sua primeira versão definitiva em disco editado em 1975 pelo selo Obscure Records, que era dirigido pelo músico e produtor Brian Eno. Ao longo de mais de cinquenta anos decorridos desde então, Gavin Bryars incorporou variações, quer de duração, quer de orquestração, quer mesmo de substância musical, fazendo desta composição uma obra aberta e viva.
Em 1972 estreia “Jesus’ Blood Never Failed Me Yet”, uma composição que parte da gravação em Londres, para um projeto cinematográfico, da cantilena de um sem-abrigo: Jesus’ blood never failed me yet / Never failed me yet / Jesus’ blood never failed me yet / There’s one thing I know / For he loves me so. Geralmente, a obra é apresentada numa versão de 30 a 40 minutos, mas em 1992 foi gravada e editada uma nova versão para CD, com 74 minutos, onde Tom Waits junta a sua voz mais perto do final, em contraponto à gravação original do sem-abrigo. Em 2019 foi também apresentada mais uma variação, com a duração de 12 horas, num espetáculo noturno concebido para a Tate Modern, quase perpetuando o loop do discurso e as variações orquestrais à volta dele, tendo um grupo vocal e outro instrumental de pessoas sem-abrigo, mais a Academy of St Martin in the Fields, a Southbank Sinfonia e Gavin Bryars dirigindo a apresentação e o seu próprio ensemble.
As obras maiores ao vivo e outras descobertas
Recentemente tive a oportunidade de assistir no Theatro Circo, em Braga, a uma nova apresentação destas duas obras maiores de Gavin Bryars (a primeira com 30′ e a segunda com 25′), para além de “The Flower Of Friendship” (12′), “It Never Rains” (5′) e “Epilogue From Wonderlawn” (7′). Em palco esteve o próprio compositor no piano e contrabaixo, com Morgan Goff na viola, Audrey Riley no violoncelo, James Woodrow na guitarra elétrica e o seu filho Yuri Bryars no contrabaixo e piano. Para as duas obras maiores juntaram-se-lhes um naipe de cordas, sopros e percussão formado por jovens músicos do Conservatório Gulbenkian de Braga e da Escola Profissional de Música de Espinho, estando programada a apresentação também no auditório dessa cidade.
Em viagem, no regresso, ouvimos o disco de 2020 “Incoherent American Narrative”, assinado em parceria com os Crowhurst, um projeto liderado pelo artista norte-americano Jay Gambit, frequentemente associado ao noise e ao black metal para, neste trabalho, se encontrarem em três composições que falam em linguagens minimalista e de improvisação livre. A seguir escutaria “The Stopping Train”, de 2017, concebido com o escritor, poeta e narrador Blake Morrison e composto numa sequência de andamentos interpretados pelo Gavin Bryars Ensemble, para ouvir-se idealmente em auscultadores numa viagem de comboio, correspondendo cada peça à partida e à duração da viagem entre as estações do caminho de ferro de Goole (a sua terra natal) a Hull, no East Yorkshire, e o regresso à estação da partida.
A música de Gavin Bryars nunca é um simples regresso ao ponto de partida; é mais um atalho para onde desejamos chegar! Casado com a realizadora russa Anna Chernakova, o compositor vive e trabalha entre Leicestershire, no Reino Unido, e a British Columbia, a província mais ocidental do Canadá.
Texto e imagem CC BY 4.0 Deed // Luís Freixo